Avatar – o despertar de uma consciência

No penúltimo texto postado no blog, escrevi sobre Atendimento “humanizado” para humanos, o que me levou a hoje escrever sobre abatimento humanitário. O termo, contraditório por natureza, gera uma controvérsia gigantesca e isso fará com que este, provavelmente, seja o post mais longo do blog, mas eu agradeceria enormemente o esforço para chegarem até o final, pois penso que possa resultar em algo útil a ser considerado por todos, independentemente do lado em que o leitor se colocar, tratando-se, contudo, de uma singela tentativa minha de exposição de um assunto tão cheio de variáveis e questões tão importantes, com fins verdadeiros de trazermos mais luz e diversidade de opiniões, evitando, porém, precipitações nas avaliações pessoais.

Andei lendo algumas coisas de gente mais enfronhada no assunto, na sua maioria vegetarianos e ONGs protetoras dos direitos animais, e percebi posições sempre muito agudas por parte dos que não fazem uso de carne. Apenas para esclarecer de forma muito resumida, abatimento humanitário é aquele que visa estabelecer condições menos “traumatizantes” para o animal, digamos assim, no momento do abate. Há os que dizem que tais condições foram pensadas visando muito mais a melhoria do resultado do produto final do abate – como o aproveitamento da área para extração do couro, a qualidade da textura do couro e da carne, a durabilidade da carne até o consumo final, visto que o estresse no momento do abate gera contusões e também libera substâncias que ocasionam o endurecimento da mesma -, do que estão preocupados com o estado “emocional” dos animais, já que seu fim é certo e não teria adiamento, não importando se iriam ser abatidos “com amor” ou não, expressão usada por eles.

No entanto, existe um lado que é pouco abordado pelos mantenedores de alguns sites de ONGs ligadas à proteção e conservação animal, que é uma reflexão mais pormenorizada quanto ao real papel e utilidade dos animais em nossas vidas, sem se mostrarem afetados, mesmo que justificadamente, pois sabemos que realmente se comiseram do infortúnio a que milhares de animais são submetidos.

Muitos vegetarianos simplesmente condenam o uso da carne, de qualquer espécie, oriunda de abatimento humanitário ou não. Os “carnívoros” são adeptos ao consumo, não levando em conta os processos do abatimento, apenas usufruindo do produto final, às vezes justificando-se em cima das necessidades protéicas do aparelho fisiológico humano, que são sabidamente supridas pela carne. Outros, ainda, fazem uso mais moderado de carne, seja na quantidade, seja no tipo, optando por aqueles tipos que julgam menos ofensivos a si próprios, testando suas necessidades reais de consumo, buscando a aquisição de outros valores, não só nutritivos, como humanos . Mas nesta guerra de emoções e hábitos, preceitos e modos de vida tão distintos é possível, com um pouquinho mais de reflexão e de boa-vontade, chegarmos a uma questão maior, que percebi estar presente no filme Avatar, sucesso mundial do diretor James Cameron, talvez trazido sem essa intenção – a consciência do abate.

A cena a que me refiro é aquela em que Neytiri , princesa do clã Omaticaya e nativa do povo Na’Vi, do planeta Pandora, está ensinando técnicas de caça a Jake (no modo Avatar –  foto abaixo), soldado paraplégico envolvido no programa Avatar e que está em busca de um precioso elemento natural do planeta. No momento em que Neytiri abate o animal durante a prática e que ele está nos seus instantes finais de vida, ela diz: “I see you”; em português, “Eu vejo você”. Esta é não só uma declaração de reconhecimento de existência do animal, mas também um atestado de presença da consciência universal superior diante da importância do animal abatido e o papel que ambos, caça e caçador, exercem na manutenção da sobrevivência do povo. Acredito que foi uma inspiração feliz de Cameron.

O que não podemos deixar de analisar, agora sobre a questão de carnívoros e vegetarianos, é o lugar de cada um na coexistência entre humanos e animais, e o tempo de cada um nesse processo de amadurecimento da consciência. A necessidade de absorção de proteína pelo ser humano é fato. Entretanto, também é fato que devemos sempre nos esforçar para buscarmos valores e olhares que tocam o futuro, uma vez que tudo está totalmente interligado. Veja só: mais humanos, mais bocas; mais bocas, mais rebanhos (bovino, suíno, avicultura, etc); mais rebanhos, mais pasto; mais pasto, menos florestas; menos florestas, mais calor; mais calor, menos gelo; menos gelo, mais água; mais água, menos terra; menos terra, menos espaço, menos espaço, caos.

A necessidade de, aos poucos, individual e coletivamente, irmos pensando e usando alternativas de substituição e adequação dos recursos protéicos advindos dos animais, nossos parceiros de existência, por recursos também oferecidos por vegetais, legumes e grãos é premente em dois sentidos, acredito:

  • primeiro, para a manutenção do equilíbrio entre o homem, os animais e as fronteiras agrícolas¹;
  • segundo, para, aos poucos, nos desvencilharmos de uma prática milenar de extermínio e da sensação desagradável de estarmos abrigando corpos de animais abatidos dentro dos nossos próprios corpos. Por este prisma é diferente, não é?

Comer carne se tornou tão natural no processo evolutivo dos seres humanos que mal nos damos conta que mais de 300.000 anos se passaram. É uma prática que remonta ao tempo das cavernas, quando ainda éramos chamados homem-de-neanderthal, antes de evoluirmos a Homo sapiens.

É claro que ninguém está falando aqui para pararmos de comer carne amanhã, até porque isso poderia gerar deficiências no organismo que, em se acentuando, culminariam em doenças mais sérias. Mas acredito que nossa natureza é tão prodigiosa e abundante de recursos e nós temos tanta capacidade de adaptação, que certamente, minha opinião, nos permitiriam uma migração de hábitos alimentares. Talvez já seja hora de os homens começarem a pensar em mudar de olhar, de relação com as plantas e os animais, de hábitos antigos, de modo de vida e, finalmente, de status. Precisamos, aos poucos, ir deixando o “homem-velhus” para trás. Precisamos ser melhores para dizermos: “Eu vejo você”.

Nota: 1 – Fronteira Agrícola: é o avanço da unidade de produção capitalista sobre o meio ambiente, terras cultiváveis e/ou terras de agricultura familiar. A fronteira agrícola está ligada com a necessidade de maior produção de alimentos, criação de animais sob a demanda internacional de importação destes produtos. Além disso seu crescimento acelerado também está ligado pela ausência de políticas públicas eficazes onde a terra acaba sendo comprada barata e o controle fiscal inoperante. (Wikipédia)

Links para sua apreciação e informação sobre abate humanitário. Um é nacional e o outro é internacional.

http://www.wspabrasil.org/wspaswork/factoryfarming/Abate-humanitario.aspx
http://www.wspa-international.org/

Para os que quiserem e tiverem estômago muito forte, há um excelente documentário com legenda em português no YouTube chamado Earthlings (Terráqueos), com duração de 1h36m. Eles pedem que se faça login e senha, dado ao conteúdo das fortes cenas, que mostra as barbáries feitas com os animais em vias de abatimento. É duro de ver, mas transformador, ainda que de forma dolorida aos olhos. Para quem gosta de Jogos Mortais e filmes do gênero, é como assistir ao desenho do Pica-Pau.

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Sobre João Viégas

Professor, consultor e especialista em Comunicação, autor e editor do livro 'tempo.com - A comunicação esquecida em tempos de Internet'.
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8 respostas para Avatar – o despertar de uma consciência

  1. Cléia Viégas disse:

    Vou pensar sobre isso!

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  2. Lívia Viégas disse:

    Hummm, o assunto é pra pensar mesmo! Adoraria parar de comer carne mas não estou neste processo de evolução aindaaa. Vamos refletir!!!

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    • Lembrando que o assunto não se restringe só a comer ou não comer carne, mas também aos métodos utilizados no abate, expansão da fronteira agrícola, pesquisa, desenvolvimento sustentável, manejo do solo…rs, pouca coisa. Claro, que tudo aos poucos, mas temos que nos ligar a estes assuntos porque têm a ver com o nosso futuro, não é? Obrigado pela leitura e pelo comentário.

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  3. Heloisa V. Coutinho disse:

    João,

    O tema é muitíssimo importante! No início você alerta para o fato de o texto ser longo e agradece o esforço para chegarmos ao final da leitura. Quero dizer que ao terminar a leitura tive a sensação de ter pulado alguma parte porque acabou muito rápido. Sua forma de escrever propicia uma leitura extremamente agradável, mesmo quando o tema é pesado e de certa forma indigesto!
    João, eu sou um exemplo vivo de que a supressão repentina e descuidada da carne na alimentação pode trazer más consequências. No meio do ano passado tomada por uma sensação ruim e pesada em relação ao consumo de carne e pelo desejo e necessidade de me preparar melhor para atividades ligadas às minhas crenças religiosas, tomei a decisão de parar de comer carne vermelha e de ficar pelo menos 2 dias na semana sem qualquer carne. Nunca havia conseguido formular tão concreta e horripilantemente o que é comer carne. Estamos abrigando corpos de animais abatidos dentro dos nossos próprios corpos.
    Bom, neste momento voltei a consumir carne por motivo de saúde, mas tenho certeza de ser possível viver bem e com saúde sem carne. Uma vez passado o momento de crise retomarei a minha decisão, dessa vez de forma mais criteriosa e com orientação de um nutricionista para evitar novos problemas. Não vejo a hora de poder parar novamente!
    “Eu vejo você!” O mundo certamente será muito melhor no dia em que nós todos, seres humanos, tivermos envergadura moral suficiente para dizer “Eu vejo você!” aos animais, aquele que são abatidos diariamente para o consumo na alimentação; aos abandonados nas ruas, aos que são preparados para morte numa arena de touradas; aos que puxam pesos enormes em carroças com fome e sede sem direito a descanso; aos peixes que morrem de forma absurdamente cruel, asfixiados; enfim, a todos os animais, filhos de Deus assim como nós.

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    • Heloisa, obrigado mais uma vez pela leitura e pelo depoimento pessoal. Seu comentário fideliza grandemente a questão colocada no artigo, lembrando aos demais leitores a questão da necessidade de um acompanhamento, de se informar com amigos que já passaram pela experiência, ler os relatos dos vegetarianos, etc. E, como foi muito bem lembrado por você, a questão dos abandonados, touradas e outras atrocidades mais. Tomara que, com o passar dos tempos, possamos ir nos conscientizando mais, tanto sobre os animais quanto sobre as mudanças necessárias em nossa alimentação, sempre ligando também à questão da fronteira agrícola, que é muito importante.

      Um abraço!

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  4. JEAN WYLLYS *

    O mundo representado em Avatar – filme de James Cameron – não está tão além de nossa imaginação como alguns afirmam. Existem povos e pessoas que mantêm, com a natureza, relação semelhante à do povo Na’vi (os humanóides habitantes do planeta Pandora). Os indígenas e os adeptos do candomblé são alguns desses povos e pessoas. Por ignorância ou falta de repertório cultural, a grande maioria dos milhões de brasileiros que têm ido ao cinema assistirem ao filme não consegue fazer tal comparação. Por isso mesmo, é importante que ela seja feita aqui e agora e que seja explorada ao máximo por professores dos ensinos fundamental e médio, sobretudo neste momento delicado em que terreiros de candomblé de Salvador vêm sendo atacados por criminosos e/ou “demonizados” por cristãos fundamentalistas e por uma mídia igualmente ignorante (aliás, em Avatar, o povo Na’vi é também atacado e vítima de preconceitos e tem seu “terreiro” destruído por armas e ferramentas).
    Para os adeptos do candomblé, a natureza é viva e, dela, fazemos parte; a ela, estamos conectados profundamente. Identificar os orixás (ou inquices ou voduns ou, como quer o sincretismo religioso, santos) de uma pessoa é reconhecer as forças da natureza às quais ela está conectada; os elementos da natureza e da vida cotidiana que constituem seu axé, a força sagrada da vida.

    Exu são os caminhos e o movimento, o sangue e sêmen; Iemanjá são os mares, calmos ou bravios; Iansã são os ventos fortes e os raios, mas, também a brisa leve; Ogum é a guerra e é a paz; Omolu é a doença e a cura; Oxum é a água doce e a fertilidade; Oxóssi são as matas; e por aí vai…

    Desespero semelhante ao do povo Na’vi diante da derrubada grande árvore pode ser visto em terreiros cuja gameleira de fundação morre ou tomba. A ialorixá ou babalorixá e seus filhos choram a morte da árvore que representa o tempo, o tempo do próprio terreiro. A cena em que uma na’vi ensina o avatar a sacrificar o animal que servirá de alimento de forma “limpa”, quase indolor, representa bem a maneira como animais são sacrificados em rituais do candomblé. Ao contrário do que os ignorantes e preconceituosos propagam, não há crueldade em nenhum dos sacrifícios rituais do candomblé realizados com animais. A razão do ritual é alimentar a família do terreiro, inclusive os pais e as mães ancestrais que estão na origem de tudo, os orixás. E o povo de terreiro, assim como o Na’vi, sabe agradecer à natureza pelo alimento que lhe matem vivo; ao contrário daqueles hipócritas que, embora condenem o candomblé pelo sacrifício ritual, consomem diariamente quilos de carne animal sem se perguntar sobre os métodos utilizados para o abate de bois, carneiros, bodes, aves e peixes; certamente não deve haver qualquer cuidado.

    E já que o assunto é sacrifício ritual, que fique claro de uma vez por todas que nunca houve e não há em nenhuma das chamadas “religiões de matriz africana” ritual envolvendo sacrifício de vida humana, seja qual for sua faixa etária. Portanto, a imprensa tem a obrigação de não associar o estarrecedor episódio das agulhas enfiadas no menino ao candomblé ou a qualquer outra religião de matriz africana. Os rituais do candomblé não têm nada a ver com aquele crime ou com qualquer outro! Os rituais são apenas meio de reverenciar a natureza e de solicitar sua ajuda, assim como o é aquele ritual Na’vi para devolver a vida à pesquisadora interpretada por Sigourney Weaver. O candomblé não sacrifica vida humana, principalmente a vida de um erê. E ainda que a acusada de enfiar as agulhas na criança afirme ser “mãe-de-santo”, não se pode condenar o candomblé como um todo, pois, quando um médico ou um pastor ou um padre comete crimes a imprensa não condena toda medicina nem todo cristianismo.

    Os modos de vida do povo Na’vi não são, portanto, frutos da imaginação criativa de James Cameron. O diretor certamente se inspirou em tratados antropológicos sobre povos que têm a natureza como algo sagrado; como uma “Grande mãe”; e, entre esses povos, estão os nossos indígenas e o povo de terreiro. Assim, aos que poluem, desmatam, profanam terreiros ou demonizam os orixás, eu deixo a melhor lição de Avatar: o que natureza deseja sempre é manter seu equilíbrio, mesmo que, para tanto, ceife algumas vidas; a gente fala, mas, a última palavra é dela!

    * Jean Wyllys é Deputado Federal pelo PSOL
    link do texto http://redeafrobrasileira.com.br/profiles/blogs/a-melhor-licao-de-avatar-em

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